Sobre Machu Picchu, um dos destinos turÃsticos mais conhecidos de toda a América
Latina, quase tudo já foi dito (embora ainda se saiba pouco sobre a cidade perdida dos
incas, descoberta em 1911). Mas poucos conhecem que há um novo caminho para chegar
até lá - na minha opinião, muito mais bonito e interessante que as alternativas
consagradas: a Transoceânica, ligando Atlântico e PacÃfico, através da selva amazônica e a
cordilheira dos Andes.
Com algum esforço e ajuda local, organizamos a viagem, mais uma da minha famÃlia para
destinos incomuns ou pouco utilizados. Depois de alugar uma 4 X 4 e obter a necessária
autorização no consulado do Peru em Rio Branco, pegamos um vôo da Gol.
Ficamos pouco na simpática e pacata capital, marcada por lembranças da luta dos acreanos
para se tornarem independentes (e brasileiros), como o Memorial dos Autonomistas e o
Palácio Rio Branco. Nosso negócio era pegar a estrada, mas ainda faltava um detalhe
fundamental, que deixei de cuidar na partida; trocar nossos reais por dólares ou soles.
Demos azar de chegar num feriado. Rio Branco não tem casas de câmbio e partimos na
esperança de trocar o dinheiro na fronteira.
A caminho da fronteira trinacional que separa o Brasil da BolÃvia e Peru, fizemos um
pequeno desvio para conhecer o Seringal Cachoeira, sede do Assentamento
Agroextrativista Chico Mendes, em Xapuri, marco da luta dos povos da floresta contra o
desmatamento, onde uma pousada rústica oferece passeios a pé e de bicicleta pelo que
restou da floresta.
A parada seguinte foi Assis Brasil, onde, pasmem, a agência do Banco do Brasil não faz
câmbio. Passar a fronteira foi talvez a maior aventura da viagem, pois um policial mal
humorado simplesmente descartou a autorização oficial do cônsul peruano, acenando com
um certo decreto imperial número 24 que restringiria o trânsito de veÃculos estrangeiros
aos conduzidos por seus proprietários – e dizendo que cônsul nenhum mudaria essa
realidade. Com jeitinho e uma carta do editor Paulo Lima, informando que estava ali a
passeio, mas também para coletar dados para uma matéria jornalÃstica, o sujeito que
parecia estar tentando criar dificuldade para vender facilidade acabou cedendo. Ou seja:
quem se dispuser a repetir a experiência, deve estar preparado para esse tipo de encrenca.
A demora fez com que o posto da aduana, onde é preciso carimbar os passaportes e obter
outra autorização fechasse para o almoço, que resolvemos num buteco em frente à aduana
com uma sopa, o arroz com feijão dos peruanos. A melhor notÃcia do dia foi que é fácil e
seguro trocar reais na agência do Banco Nacional do Peru, em Iñapari, já do lado peruano.
Dali em diante, foi quase um passeio de 229 quilômetros até Puerto Maldonado. A
Transoceânica é imponente só no nome: na prática, é uma estrada de pista simples e duas
mãos, asfaltada e bem sinalizada, sem grandes curvas nesse trecho. Nesse primeiro trecho
não há surpresas na paisagem, ainda plana e marcada pela agricultura e pecuária.
Na confluência dos rios Tambopata e Madre de Dios, uma enorme estrutura de metal,
inacabada, domina o cenário. É, ou melhor, será um dia, a ponte estaiada Guillermo
Billinghurst. Deveria ser inaugurada em janeiro de 2011, mas pouco antes de passarmos
por lá (no final de dezembro de 2010) localizaram uma fissura perigosa em suas estruturas
e agora ela terá de ser desmontada. Não há previsão de conclusão dos trabalhos. Enquanto
isso, o jeito é usar as balsas – há de tamanhos e preços diversos, mas recomendo não
economizar tostões numa hora dessas.
Chegamos a Puerto Maldonado no final da tarde e em minutos fomos envolvidos pela
atordoante sinfonia de buzinas das legiões de mototáxis cabinados, que não respeitam a
mais elementar regra de trânsito. Entreposto para os 40 mil garimpeiros que buscam ouro
nos rios da provÃncia de Madre de Dois e transformam a paisagem em deserto, a cidade
tem um comércio vivo e caótico.
Nas proximidades, dois lagos enormes e duas reservas naturais gigantescas, que podem ser
desfrutados a partir de resorts e lofts ajeitados. Nós preferimos algo mais prosaico: as
cabanas com grandes ventiladores de teto e janelas cobertas por telas em meio a um
pequeno bosque repleto de macacos, nas proximidades do aeroporto. Donald, suiço
nascido no Peru trata os hóspedes como convidados de sua casa. Wadee reconstrói pratos
indonésios com algumas adaptações. Ótima parada.
Na manhã seguinte, pé, ou melhor, pneus na estrada. Em Puerto Maldonado começa a
parte mais bonita da viagem. O asfalto é bom, há muitas retas e a tentação de desrespeitar
os 60 quilômetros por hora de velocidade máxima é grande. Mas há inúmeros quebramolas
e sempre pode aparecer vaca, ovelha ou cachorro desavisado – para não falar dos
caminhões. Carros brasileiros são raridade. Entre ida e volta, contamos cinco apenas. Há
combustÃvel por todo o caminho, mas os postos são precários e o preço flutua. Felizmente,
o câmbio nos favorece.
No meio do verde, um oásis ao contrário, com tendas azuis de plástico cercadas de areia:
um acampamento de garimpeiros à beira da estrada, com seus bares, boates e lavas-motos,
a mais evidente demonstração de prosperidade dos mineradores.
Aos poucos, surgem a floresta e suas cachoeiras. A subida – e que subida! começa logo
após o povoado de Santa Rosa, a 120 quilômetros de Puerto Maldonado, mas aperta
mesmo a partir de Quince Mil, que surgiu em torno do acampamento de peões. Ali
paramos para comer no restaurante da chef Magaly e fomos os primeiros estrangeiros
atendidos por Marisol, de onze anos, curiosa sobre o Brasil, que nos serviu uma ótima sopa
de entulho, ao preço de quatro reais por pessoa.
A partir dali subimos sempre, esquerda e direita, direita e esquerda, muitas vezes, em
curvas de 180 graus. O limite de velocidade, 20 quilômetros por hora, torna-se
desnecessário, pois é quase impossÃvel andar mais que isso. O termômetro despenca e o
soroche pode dar sinal de vida. Soroche é o mal das alturas, provocado pelo ar rarefeito.
Provoca indisposição geral, forte dor de cabeça e ânsia de vômito. Há meia dúzia de
maneiras de enfrentá-lo: a mais popular – e ilegal – é mascar folhas de coca. Algo tão
natural naquelas alturas quanto chiclete por aqui. Amargo, mas eficiente. Felizmente,
passamos ao largo dos piores sintomas.
A paisagem é de tirar o pouco fôlego que resta: neves eternas, construções rústicas de
pedra, peruanos em seus coloridos trajes tÃpicos no cenário ocre, cinza, preto e branco,
lhamas e guanacos. E um ziguezague interminável e impressionante. Aqui e acolá, os
derrumbes – deslizamentos comuns naqueles terrenos, que os operários atacam com pás,
tratores e caminhões. Por alguns quilômetros, tivemos de usar um desvio improvisado.
Mas nada que assuste muito quem trafega pelas estradas brasileiras.
Em Marcapata, a mais de 3200 metros, está a Igreja de San Francisco de Asis, do final do
século XVI, bom exemplo de arquitetura barroca andina, com alvenaria de pedrra e
entulho e telhado de sapé. Frio e preocupação com o resto da viagem nos fizeram passar
batidos. Pena. É um belo monumento.
Afinal, alcançamos o ponto mais alto: 4.857 metros. Há uma placa identificando o local e
nas proximidades, um mirante novinho em folha – e deserto. Na lojinha de artesanato,
casacos de lã e artesanatos expostos sem ninguém para vigiar. Bar, sanitário e restaurante
fechados. Falta muito para que a Transoceânica seja uma rota turÃstica usual. Mas, para
registro: a estrada dispensa os 4 X 4, caros e raros em Rio Branco. Qualquer carro médio a
destrincha.
Do outro lado do pico, mais curvas e uma descida acentuada até Cuzco, que fica no
sudeste do Vale de Huatanay ou Vale Sagrado dos Incas, a apenas 3.400 metros de altitude.
Em quechua, Cuzco quer dizer umbigo – umbigo do mundo, acreditavam os incas, que ali
criaram o mais importante centro administrativo e cultural do seu império.
Dali que partirÃamos para a segunda etapa da nossa aventura: quatro dias trotando nas
alturas pela trilha inca, sendo ultrapassados por carregadores locais subindo e descendo
infindáveis escadarias de pedra como quem faz jogging no parque, (mascando coca o
tempo todo) em direção a Machu Picchu. Mas essa é uma outra história, que fica para uma
outra vez.