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Uniforme de campanha

1 de jun. de 1988

VeĆ­culo: Folha da Tarde
Coluna: Parem as rotativas

Outro dia, nĆ£o faz muito tempo, flagrei minha filha saindo para a escola, de manhĆ£ cedo, com uma surrada jaqueta jeans. ā€œOnde Ć© que vocĆŖ achou esse lixoā€, perguntei, tonto de sono. E ele me explicou, com simplicidade adolescente: ā€œNo seu armĆ”rio, pai.ā€ Reconheci entĆ£o nada mais nada menos que meu uniforme de campanha. Um casaco remanescente de 1968, vitorioso de tantas batalhas e que tem mais tempo de passeata do que muito constituinte tem de plenĆ”rio.

Segundo ela, as jaquetas do gĆŖnero estĆ£o na crista da onda, como se dizia antigamente. E isso me levou a pensar sobre os idos de 68, quando Vladimir Palmeira, LuĆ­s Travassos e JosĆ© Dirceu eram tĆ£o conhecidos quanto Paulo Ricardo, LobĆ£o e Dinho ā€“ o do Capital Inicial. Entre o espelho do banheiro e a mesa do cafĆ©, cheguei a duas graves conclusƵes. Primeiro: estou ficando velho. Nenhum sujeito flagra a prĆ³pria filha evergando um velho casaco que nĆ£o lhe cabe mais sem cair na real. Como quanto a isso nada se pode fazer, passei imediatamente ao segundo ponto: o movimento estudantil jĆ” era. Acabou sufocado pela onda do pĆ³s-moderno. A garotada de hoje se divide entre a prevenĆ§Ć£o da Aids e a vontade de ficar rico. O sonho yuppie tomou conta do pedaƧo e quem nĆ£o dormiu no sleeping-bag, nem sequer sonhou ā€“ como se vĆŖ, de manhĆ£ cedo minha sociologia nĆ£o Ć© nada original.

Mas a imagem da garota descendo as escadas, saltitante, dentro da jaqueta que faria boa figura em qualquer assemblƩia, fiquei com a pulga atrƔs da orelha, devo confessar.

E a conclusĆ£o nĆŗmero dois do meu raciocĆ­nio virou fumaƧa na semana passada, quando dez mil estudantes se engalfinharam com a polĆ­cia e vaiaram vĆ”rios polĆ­ticos na avenida Paulista, num protesto contra o aumento absurdo das mensalidades escolares. Quer dizer: nĆ£o sĆ£o apenas as jaquetas que estĆ£o saindo do fundo dos armĆ”rios.

Acontece que, nesses 20 anos, muita coisa aconteceu. O bar do ZĆ©, na Maria AntĆ“nia, onde a bagunƧa comeƧava, reĆŗne hoje apenas velhos senhores meio barrigudos, que lembram os bons tempos diante de uma cervejinha. As manifestaƧƵes, que sempre eram marcadas para o centro velho, hoje comeƧam na escadaria do prĆ©dio da Gazeta, em plena Paulista ā€“ para que nenhum publicitĆ”rio criativo veja seu anĆŗncio de jeans jogado for. CenĆ”rio Ć© cenĆ”rio.

NinguĆ©m grita abaixo a ditadura, nem critica o acordo MEC-Usaid. Dirigente da UNE usa brinco e acabou no sambĆ£o depois da passeata. O mĆ”ximo que se admite Ć© uma confraternizaĆ§Ć£o no Aeroanta. Mas nĆ£o sĆ£o as Ćŗnicas mudanƧas. Em 68, os militares ditavam a polĆ­tica econĆ“mica e ameaƧavam dar golpe, se o Congresso botasse as manguinhas de fora. O Brasil seguia a receita do FMI e a oposiĆ§Ć£o bem que esperneava, mas era o governo que tinha o controle da situaĆ§Ć£o. Por isso, se alguĆ©m lhe disser, com cara de sĆ©rio, que essa movimentaĆ§Ć£o estudantil pode ser o estopim que vai estourar o barril de pĆ³lvora, e que os estudantes, tĆŖm tempo, disposiĆ§Ć£o e irritaĆ§Ć£o suficiente para comprar uma boa briga, discorde. O Brasil mudou...Mudou?


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