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Um grito de liberdade

15 de ago. de 1988

VeĆ­culo: Folha da Tarde
Coluna: Parem as rotativas

O grito de guerra de comunistas, trotsquistas e anarquistas, cantando em alto e bom som, afinação perfeita, letra completa, bem na esquina das ruas Áustria e ItÔlia, no Jardim Europa, diante de algumas das melhores mansões da cidade? Coisa do ClÔudio Abramo, sem dúvida. Quem mais, senão ele, conseguiria reunir platéia tão seleta, em ambiente tão distinto, para ato tão subversivo, numa ensolarada manhã de Domingo? Só ele mesmo para concretizar o sonho rebelde de fazer ecoar, ali, no coração dos Jardins, a Internacional, com sua melodiosa conclamação à união dos proletÔrios de todo mundo.

Entre os presentes, nĆ£o havia, Ć© bem verdade, um só representante direto desses humilhados e ofendidos. ƀquela altura do campeonato, as vĆ­timas da fome, os famĆ©licos do mundo de que fala a Internacional, deviam estar, em sua versĆ£o paulistana e modernizada, acompanhando as aventuras do Condor Contrariado, na Disneylandia. A praƧa Ć© do povo, como o cĆ©u Ć© do condor, mas Ć s vezes, nĆ£o Ć© bem assim, como o próprio ClĆ”udio Abramo, agora tornado praƧa, sabia – e bem.

Mas acho que ele deve ter gostado da sua pracinha – pouco mais do que 50 metros quadrados de grama e raras Ć”rvores, onde as crianƧas podem rolar, os cĆ£es fazer xixi e algum vagabundo desorientado pode atĆ© curtir o seu fogo, atĆ© que um dos seguranƧas da vizinhanƧa venha enxotar o mal nascido para qualquer canto menos elegante.

O ClĆ”udio deve ter gostado tambĆ©m de rever ali alguns amigos, muitos colegas e o clĆ£ dos Abramo. Certamente constataria que continuamos sendo poucos – cada vez menos, diria eu de olho nas carecas, barrigas e cabelos brancos do time que jĆ” foi a chamada ala jovem da Imprensa, os filhos do ClĆ”udio, os garotos da Folha e hoje estĆ” mais pra aposentadoria do que pra qualquer outra coisa.

Se ainda editasse algum jornal, mandaria o registro da inauguração de sua própria praƧa para o lixo – nĆ£o sem antes de envaidecer, para alĆ©m de seu jeitĆ£o blasĆ© mais evidente. Fosse de algum amigo seu – como ele identificado com o socialismo, o avanƧo da humanidade, a esquerda, seja lĆ” qual for o rótulo – e mandaria dar, num espaƧo razoĆ”vel, com foto e tudo, como fez, muitas vezes, no tempo em que isso era mais do que um capricho – era uma forma de resistĆŖncia Ć  censura.

Mas se o ClĆ”udio gostou ou nĆ£o gostou da praƧa, se daria ou nĆ£o daria a tal matĆ©ria, nĆ£o interessa a ninguĆ©m. Interessa, imagino, que ele se foi hĆ” um ano e que o horizonte do nosso jornalismo continua se transformando cada vez mais numa vasta, verdejante, bem irrigada – e acachapante planĆ­cie.

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