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Um festival de tragédias

11 de jul. de 1988

Veículo: Folha da Tarde
Coluna: Parem as rotativas

Não é preciso ser muito sagaz, nem arguto, para constatar que os jornais (quase todos) estão se tornando cada vez mais uma coleção completa e acabada de absurdos, tragédias e barbaridades de toda espécie. O que vira letra de forma é o espantoso, o chocante. Do avião iraniano ao surto de meningite. E justamente por isso, imaginei que só deveria parar as rotativas para provocar sorrisos.

Como repórter, a gente se acostuma com o drama. E vai, aos poucos, construindo uma espécie de casca profissional, sem a qual tarimbados jornalistas entregariam os pontos na cobertura do acidente de trânsito mais corriqueiro. Pois foi essa minha casca que desmoronou esta semana diante de um alagoano chamado Augusto. O marceneiro Augusto.

Seu Augusto mora no Cangaíba, lá na Zona Leste. Há quantro anos e pouco, quando sua mulher estava grávida, um caminhão da Prefeitura entrou na casa onde eles moravam e botou tudo abaixo. A indenização seu Augusto ainda não recebeu. Meses depois, nasceu o bebê, que levou o nome do pai. Sem pênis, nem bexiga.

Uma operação delicada, no Hospital das Clínicas, garantiu a sobrevivência do garoto. No começo do governo Quércia, seu Augusto, marceneiro, ex-marinheiro, funcionário por concurso da USP, foi demitido – ele acumulava as funções de marceneiro e segurança e seu departamento foi extinto – ao que parece, era um resquício da ditadura.

O filho do seu Augusto tem hoje quatro anos, Usa quase cem fraldas por dia, porque sua bexiga não consegue reter mais do que 200 mililitros de urina. Na quarta-feira passada, o garoto teve uma hemorragia. Seu Augusto correu para o HC, onde ficou sabendo que não há vaga para internação, nem vai haver nos próximos meses. Seu Augusto terminou num médico particular, onde só a consulta lhe custou Cz$ 10 mil. O HC tem centenas de casos mais graves e, provavelmente, mais dramáticos que o do filho do marceneiro.

Nesse dia, seu Augusto, que estava fazendo um serviço para mim, faltou ao trabalho. O serviço estava atrasado e mal executado e, por isso, disse-lhe que só pagaria quando terminasse. Foi aí que fiquei sabendo de sua história.

Não sei se adianta contá-la aqui. Tenho certeza de que em qualquer cidade do mundo, existem casos mais sombrios, absurdos e dramáticos. Seu Augusto pode até ter sido demitido por uma razão justificada. Mas isso tudo me convence de que pessoas como ele, no Brasil, não têm a mínima idéia do que seja cidadania. E de que, enquanto isso continuar sendo rotina por aqui, adianta pouco, muito pouco, termos eleições, liberdade, democracia.

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