VeĆculo: Revista Imprensa
Jornalista: Paulo Markun
Joel Silveira, o repórter que viu a tomada de Monte Castelo, agora quer conquistar Aracaju
Vi perfeitamente quando o repórter Joel Silveira sacou de sua caneta e disparou sobre o ofĆcio que acabara de receber: āAo diretor do Depac, para, ao som da Nona de Beethoven, analisar, ponderar e despachar adequadamenteā. O repórter Silveira rabiscou essas palavras com sua letra trĆŖmula, ajeitou o nó largo da gravata fora de moda, deu uma sonora risada e entregou o documento para sua fiel secretĆ”ria Ritinha. Aos 69 anos, inaugurava um estilo para os despachos, tĆ£o original e eficiente quanto o dos publicados 43 anos antes pelos DiĆ”rios Associados, com a assinatura do jovem repórter sergipano que foi conhecer a Europa junto com outros seis mil brasileiros ā os pracinhas, enviados Ć ItĆ”lia para combater as forƧas do Eixo.
Um daqueles despachos comeƧava assim:
Vi perfeitamente quando a rajada metralhadora alemã rasgou o peito do Sargento Max Wolf Júnior. Instintivamente, ele juntou as mãos sobre o ventre e caiu de bruços. Não se mexeu mais. O Tenente OtÔvio Costa, que estava ao meu lado, no Posto de Observação, apertou os dentes com força, mas não disse uma palavra. Quando lhe perguntei se o homem que havia tombado era o Sargento Wolf, ele balançou afirmativamente com a cabeça.
Menos de uma hora antes eu estivera conversando com o sargento. Creio que foi a mim que ele fez suas Ćŗltimas confidĆŖncias. Falou-me de sua filha, uma menina de 10 anos de idade que deixara em Curitiba. Disse-me que era viĆŗvo (na verdade era desquitado) e me disse que sua promoção a segundo-tenente, por ato de bravura, estava prestes a chegar. E como eu estivesse recolhendo mensagens entre os homens do seu PelotĆ£o de Choque, jĆ” alinhados para a patrulha de minutos depois, o Sargento Wolf pediu-me que tambĆ©m enviasse a sua. EstĆ£o comigo as poucas linhas que sua letra fina e desenhada escreveu no meu caderno de notas: āAos parentes e amigos: estou bem. Ć minha querida filhinha: papai vai bem e voltarĆ” breveā. NĆ£o voltaria.
Como se vĆŖ, o vi perfeitamente de 1944 era bem melhor. E mais veraz tambĆ©m. Afinal, quando eu cheguei ao gabinete de Joel Silveira, em Aracaju, no fim do mĆŖs passado, o despacho em questĆ£o, citando a Nona de Beethoven, jĆ” estava pronto e assinado. Joel Silveira adotou Beethoven em seus despachos, mas nega que pretenda criar um estilo próprio para comunicados e memorandos. Nega atĆ© mesmo que repórter tenha estilo e lembra um comentĆ”rio que ouviu do mestre Graciliano Ramos (descoberto para a literatura justamente pelo estilo de seus relatórios, como secretĆ”rio da Educação de Palmeira dos Ćndios, Alagoas):
āEstilo? Quem tem estilo Ć© Tolstoi, Sthendal. Maneira tinha o Machado de Assis. A gente só tem Ć© jeitoā.
Mas que diabos estĆ” fazendo em plena Aracaju, 1987, o veterano sem estilo de Monte Castelo? A resposta mais breve seria: āexercendo o cargo de primeiro secretĆ”rio da Cultura do Estado de Sergipeā. Mas nĆ£o Ć© nem completa, nem digna do repórter Joel Silveira e suas mil histórias, que ele jĆ” contou tantas vezes, a ponto de provocar mais uma definição definitiva de seu amigo Carlos Castello Branco, o Castelinho:
āJoel, vocĆŖ Ć© melhor falando do que escrevendoā.
Oficial de gabinete aos 13, proxeneta aos 14, repórter consagrado aos 19.
Em Aracaju, Joel Silveira nĆ£o estĆ” cobrindo uma guerra. EstĆ” participando de uma. NĆ£o Ć© nem mesmo conhecido da massa, embora tenha nascido ali mesmo e nĆ£o, como diz a lenda, em Lagarto ā a cidade em que LampiĆ£o nĆ£o entrou ā no dia 23 de setembro de 1918. Ć que ele passou 50 anos fora e quando voltou, jĆ” secretĆ”rio da Cultura do governo Antonio Carlos Valadares, caiu no meio do tiroteio que Ć© a chamada intelectualidade sergipana.
Antes de sair de Sergipe, no navio ItanajĆ©, em 1937, ele jĆ” tinha pintado e bordado. Foi oficial de gabinete do governador Augusto Mainard Gomes aos 13 anos. Fundou o GrĆŖmio Clodomir Silva no Atheneu D. Pedro II, o colĆ©gio da cidade. Liderou uma greve e arrancou os trilhos do bonde, num protesto contra o aumento das passagens. Conheceu uma certa Iracema Costa Lira, aos 11 anos ā paixĆ£o fulminante que transformou em casamento quando mudou para o Rio e que hoje completa, segundo Joel, ābodas de cĆ©sio 137ā. Entrou para a vida literĆ”ria no cabarĆ© Pinga-TostĆ£o, aos 14, escrevendo cartinhas para as coloridas moƧas do estabelecimento e cobrando, em dinheiro ou em espĆ©cie. Ajudou a editar A Voz do Atheneu e um āde-vez-em-quandĆ”rioā de mĆ” fama chamado A Voz do OperĆ”rio, que lhe valeu a definitiva antipatia do pai, por quem nunca nutriu aliĆ”s, sentimento diferente. Recebeu um conselho das autoridades locais ā dar um tempo, fora dali ā rompeu de vez com o pai e foi para o Rio estudar Direito, curso que jamais completou.
Quando voltou, hĆ” trĆŖs anos, foi recebido com banda de mĆŗsica. Bem, na verdade, uma banda de pĆfanos providenciada pela colunista social Clara AngĆ©lica, incumbida da recepção ao jornalista famoso, que o governador JoĆ£o Alves queria homenagear. De qualquer modo, Joel nĆ£o se fez de rogado. Tirou o paletó, comeƧou a danƧar em pleno saguĆ£o e perguntou Ć colunista ā que ele nem conhecia:
āTem uma cervejinha?ā
Tinha. E ali começou uma amizade que ia dar dor de cabeça ao velho repórter.
Entre o navio de 1937 e o avião de 1984, Joel viajou o mundo. Mas antes conquistou o Rio e virou jornalista, de um modo absolutamente original, como costuma acontecer com ele.
Quando seu dinheiro acabou, foi morar com Antonio NƔssara, seu primeiro amigo carioca. Decidido a ficar no Rio de qualquer maneira, Joel escreveu uma carta para um suplemento literƔrio recƩm-lanƧado pelo jornalista Alvaro Moreyra, o Dom Casmurro.
E no dia 23 de marƧo de 1937, uma sexta-feira, quase desmaiou na banca de jornal. A carta estava inteira na primeira pĆ”gina. Joel nĆ£o resistiu e foi Ć redação, sendo recebido com comentĆ”rios assombrados de algumas feras do jornalismo daquela Ć©poca. āĆ ele, Ć© ele!ā Espantados com o garoto de 19 anos que jĆ” tinha texto de primeiro time estavam Carlos Lacerda, Moacyr Werneck, LĆŗcio Rangel, Murilo Mendes, AnĆbal Machado e o próprio Ćlvaro Moreyra, que contratou o rapaz e sem dinheiro para pagar direito, passou a convidĆ”-lo diariamente para jantar.
Se tivesse ficado nessa turma privilegiada, Joel Silveira jÔ teria se transformado num dos monstros sagrados da Imprensa brasileira quase que por inércia. Mas é aà que entra na história Samuel Wainer. Os dois tiveram uma relação turbulenta de amor e ódio e até hoje, Joel não reconhece em Samuel uma influência decisiva em sua carreira. Só que foi no semanÔrio Diretrizes, lançado em 1937 por Samuel e Azevedo Amaral, que Joel se transformou no primeiro grande repórter brasileiro.
Em 1943, Samuel mandou seu repórter passar uma semana em SĆ£o Paulo. Com a ajuda do pintor Di Cavalcanti ā de quem se tornou grande amigo ā Joel produziu uma demolidora descrição da vida imbecil dos grĆ£-finos da Ć©poca. Sutil mas ferina, a reportagem tinha coisas do tipo:
āāO estilo de Jerry (N. R. um dos colunistas sociais mais respeitados da Ć©poca) Ć© como sua dentadura. Uma coisa certa e limpa. ImpossĆvel Ć©, porĆ©m, alguĆ©m saber se Jerry nasceu assim com bons dentes ou se o seu sorriso Ć© a realização de algum odontólogo caroā.
Diretrizes esgotou e tirou outro tanto. O rebu só foi menor do que o provocado um ano depois por uma entrevista com Monteiro Lobato, em que o escritor dizia, entre outras coisas, que o governo deve sair do povo com a fumaça sai da fogueira. A coisa esquentou para o lado do semanÔrio, que foi fechado pelo DIP. Samuel Wainer se exilou na embaixada do Chile. Joel ficou desempregado e acabou indo para a guerra.
Tudo começou, na verdade, com a reportagem sobre os grã-finos paulistas. Assis Chateaubriand viu e disse:
āEsse sujeito Ć© uma vĆbora. Quero ele trabalhando para mimā.
Na ocasião, Joel recusou, mas com o semanÔrio fechado, acabou indo para os DiÔrios Associados, onde estavam os três maiores repórteres da época: Edgar Morel, David Nasser e Carlos Lacerda. Para não ferir nenhum dos três, Chateaubriand resolveu mandar para a guerra o número quatro, aquele sergipano de 26 anos.
Na guerra, combatendo as metÔforas óbvias e o sentimentalismo barato.
Escrevo esta minha primeira reportagem após 22 horas a bordo do transporte que nos desembarcarĆ” dentro de 16 dias em NĆ”poles. A mim e a cerca de seis mil soldados que comigo seguem para a guerra. Ć um mundo estranho e misterioso que possivelmente levarĆ” muito tempo para ser revelado. Ando pelos porƵes do imenso navio, perco-me em seus corredores que parecem nĆ£o ter fim, e cada porta de ferro se abre para nova surpresa. Os avisos e os alto-falantes que se multiplicam por todos os compartimentos sĆ£o guias orais e explĆcitos do que se deve e nĆ£o se deve fazer. Estamos em guerra, somos uma multidĆ£o que segue para a guerra e muita coisa nĆ£o se deve fazer: nĆ£o se deve, por exemplo, atirar qualquer coisa ao mar. Sou apenas um recruta, bisonho e desprevenido como todo recruta, um pobre e indefeso civil em poucas semanas transformado em um soldado da ativa e me emaranho e me confundo num mundo que nunca foi o meu.
Joel passou nove meses e 11 dias no front. Voltou cheio de histórias e experiĆŖncias e jĆ” transformado no nĆŗmero um da reportagem. Trabalhou ao lado do amigo Rubem Braga, de Egydio Squeff, de Thassilo Mitke e de figurƵes como Harry Buckley e Ernest Hemingway. Engoliu a todos. Suas matĆ©rias, escritas numa mĆ”quina portĆ”til que aparece numa das fotos da Ć©poca, Ć s vezes sob o frio intenso sĆ£o mais que um relato jornalĆstico. Ele escapa das imagens fĆ”ceis, das metĆ”foras óbvias, do sentimentalismo superficial. Aqui e ali, existe Ć© claro aquela pitada de emoção, um toque de poesia, humor, ironia, humanidade. Por exemplo:
...Metade da noite os alemĆ£es lanƧaram um ou dois foguetes iluminativos ā Ć© assim que se diz? O belo fogo de artifĆcio brilhou no cĆ©u em centenas de pequenas estrelas; depois, o pequeno pĆ”ra-quedas iluminado foi descendo devagar, atĆ© ficar pendurado num galho sem folhas. O pracinha Francisco Aparecido de Oliveira, de JacareĆ, que fez parte da patrulha, me conta: āA Ć”rvore desgalhada de repente virou uma Ć”rvore de Natalā.
...Ćs 17h50 a voz do major Franklin vem, forte, pelo rĆ”dio: Estou no cume do Monte Castelo. E pede fogo da artilharia sobre posiƧƵes inimigas alĆ©m do monte. Castelo Ć© nosso, me diz o general Cordeiro. Mais alguns minutos e nossas baterias jĆ” estĆ£o bombardeando Caselina, Serra e Bela Vista. Os alemĆ£es respondem com morteiros. Mas nada mais lhes adiantaria, porque, com me diria na manhĆ£ seguinte o coronel Franklin, āestamos em Castelo e ninguĆ©m mais nos tira daquiā.
Os melhores textos de Joel Silveira sobre a guerra viraram livro em 1984, por causa de uma jovem repórter. Escalada para entrevistar o velho correspondente, ela confessou toda sua ignorância e lhe perguntou:
āPra comeƧar: o que Ć© essa tal de FEB?ā
A FEB, a campanha da ItÔlia, a experiência da guerra marcaram profundamente Joel Silveira. A ponto de ele se auto-definir freqüentemente como sargento Silveira, ou bater continência diante de uma bela mulher.
Senso de humor, aliƔs, Ʃ uma de suas marcas registradas. E ajudou na carreira. O humor de Joel conquistou Chateaubriand, Samuel Wainer e depois, Adolpho Bloch, com quem trabalhou 21 anos.
Adolpho só chama de āputa velhaā, uma expressĆ£o que para nós jornalistas, nĆ£o tem nada de pejorativa. Joel retrucava referindo-se ao patrĆ£o como Astolpho. A puta velha conseguiu sempre o que queria do Astolpho. Boas matĆ©rias, verba ilimitada para as viagens. Em troca, rodou o mundo, entrevistou polĆticos e personalidades, ficou em Manchete atĆ© se aposentar, em dezembro de 1981.
Quando precisava de aumento, botava na vitrola a Sétima Sinfonia de Beethoven (adora música clÔssica) e com a fúria da música na cabeça, enfrentava a mitológica avareza de seu patrão.
Depois de abandonar o jornalismo, publicou āMilagre em FlorenƧaā (contos), āA luta dos pracinhasā, āDias de lutoā (o primeiro romance), āTempo de contarā (memórias e reportagem), āO dia em que o leĆ£o morreuā (contos), āO generalĆssimo e outros incidentesā (contos e reportagens). E tem prometidos mais dois volumes de memórias: āTempo de lembrarā e āTempo de brigarā. Respectivamente, lembranƧas e reminiscĆŖncias dos tempos da ditadura. Ou das ditaturas.
Na Olivetti (que continua portĆ”til) só escreve uma coluna semanal para a Revista Nacional, um encarte produzido pelos DiĆ”rios Associados para um punhado de jornais em todo o paĆs.
E estava assim, posto em sossego ā āmorrendo aos poucosā, reconhece ā quando o recĆ©m-eleito governador de Sergipe pediu para encontrĆ”-lo em sua casa, no Rio no final do ano passado.
O apartamento de Joel fica na divisa entre Copacabana e Ipanema. Não é grande e parece ainda menor por causa dos 80 quadros e 22 mil livros espalhados por todas as paredes, numa ordem que deve muito à dona Iracema. Ela preparou uma boa feijoada para receber o governador e um velho amigo de Joel, o senador Lourival Baptista. Conversa solta, amenidades, um uisquinho. De repente, o governador pede um papo a sério.
Os três foram para o quarto que serve de escritório para o velho repórter. Ali ele trabalha entre três paredes de livros, uma janela que só mostra fundos de prédios, uma cama de solteiro e uma bancada estreita, de fórmica imitando madeira.
Em trĆŖs minutos, Antonio Carlos Valadares liquidou a fatura:
āGostaria de convidĆ”-lo para ser o secretĆ”rio da Cultura do meu governo. Ć um cargo novo e teria muito prazer se vocĆŖ aceitasse essa paradaā.
Joel se espantou. Pensou poucos segundos e disse que precisava consultar sua mulher.
Deixou o Joãozinho no Rio e partiu para a batalha de Aracaju
āO problema, governador, Ć© o JoĆ£ozinhoā.
JoĆ£ozinho tem quinze anos e Ć© o mais privilegiado morador do apartamento. Um gato angorĆ”, dado por Adolpho Bloch para substituir a Joaninha, que morreu aos 17 anos, deixando Joel mudo e cabisbaixo por mais de uma semana ā Joel tem paixĆ£o por gatos desde garoto, mas quem cuida do bichano Ć© dona Iracema. Que por sinal, faz tudo: ele nĆ£o sabe nem trocar uma lĆ¢mpada.
Dona Iracema viu que o marido queria mesmo topar a parada. E concordou imediatamente.
Ao assumir o cargo, Joel Silveira nomeou a colunista social Clara AngƩlica como secretƔria adjunta. E definiu dois objetivos: equipar as destroƧadas bibliotecas locais com pelo menos 20 mil livros e construir um grande centro cultural.
Sem experiĆŖncia administrativa e polĆtica e 50 anos longe de Sergipe, o comeƧoy nĆ£o foi fĆ”cil. Um dia, o governador chegou ao apartamento dele e encontrou a mala pronta, do lado de fora. Custou a convencĆŖ-lo a continuar no cargo.
Hoje, Antonio Carlos Valadares diz que Joel Ć© um de seus melhores secretĆ”rios. Assinou diversos convĆŖnios com o governo federal, onde tem amigos dos tempos da FEB. Os livros que pede a todos os editores do paĆs estĆ£o chegando aos milhares. JĆ” nĆ£o tem secretĆ”ria adjunta e os intelectuais da cidade se aproximaram dele.
Mas ele ainda se resguarda: não anda de bermuda fora de casa, não usa o carro oficial fora do serviço, só bebe para valer nos dias de folga. Continua sendo assunto de calçadão, mas vai sendo assimilado pela cidade. Não conseguiu uma só declaração contra ele e nem uma palavra do velho repórter sobre quem o colocou numa fria nos primeiros tempos, afastando-o de todos.
Aos 69 anos, Joel estÔ em plena guerra. Ataca os memorandos com Beethoven, o ranço da cultura local com sua simpatia, a falta de recursos com suas amizades federais, mas ainda se impacienta diante da lentidão burocrÔtica. Quando a secretÔria o convoca para um despacho com o governador, reage, meio irÓnico, meio irritado:
āDespacho? Em que encruzilhada?ā
O que ele gosta mesmo Ć© de conversar fiado, bebericando um bom uĆsque escocĆŖs ācoisa que faz com o copo indo da boca para perto do ouvido e os olhos fechados, em piedosa reverĆŖncia. NĆ£o acredita em Deus, mas adora os papas. Ć um galante inveterado, um perdulĆ”rio incorrĆgel (seus amigos trocam as notas de 500 que costuma usar por outras cem, porque ele as distribui fartamente nahora da gorjeta). Bom garfo, sem ser um gourmet, Joel tambĆ©m dorme pouco. Acorda Ć s seis da manhĆ£ e todas as noites, liga para mais de um amigo no meio da madrugada, sem motivo real, apenas para conversar.
Poderia contar muito sobre ele, mas as melhores histórias de seus 50 anos de reportagem estĆ£o em seus livros ā bem melhor escritas. Por isso, ficam aqui algumas receitas de Joel Silveira sobre seu ofĆcio:
āO repórter precisa primeiro pesquisar o assunto antes de ir a campo. Depois, deve dormir com a notĆcia. NĆ£o deve violar nunca o fato, embora este possa violar o repórter. E tem que ter sorte tambĆ©m. No dia 9 de abril de 1948 eu estava em BogotĆ”, cobrindo uma chatĆssima conferĆŖncia Pan-Americana quando explodiu uma grande revolta popular. Eu tinha ido para lĆ” como prĆŖmioā.
Em seu livro āTempo de contarā, Joel reconstitui a participação de Fidel Castro no episódio, usando um expediente que nĆ£o vacila em empregar ā a citação expressa de entrevistas ou reportagens de outros jornalistas quando ele nĆ£o tem a melhor versĆ£o. E encerra a história assim:
Fica, portanto, esclarecido o mistério e esclarecido pelo próprio Fidel: nos dias 9 e 10 de abril de 1948, o estudante Fidel Castro Ruiz participou diretamente do bogotazo. E teve até a oportunidade de dar seus quatro tirinhos.
Permanece contudo, outro mistĆ©rio: teria eu, Joel, jornalista de 33 anos, esbarrado alguma vez com o estudante Fidel, em qualquer esquina ou calƧada da convulsionada BogotĆ”, naquelas ensandecidas horas que se seguiram ao assassinato de Jorge EliĆØcer GaitĆ”n? Dada a minha total desimportĆ¢ncia histórica, que perdura atĆ© hoje, Ć© possĆvel que esse mistĆ©rio jamais seja esclarecido.
AĆ estĆ” o segredo do repórter Joel Silveira. NĆ£o levar nada a sĆ©rio ā nem a si próprio. Joel Silveira só respeita o fato. E quando lhe pergunto porque, afinal, aceitou o convite do governador, ele me diz, irĆ“nico:
āQuando o Assis Chateaubriand me mandou para a guerra, deu um conselho. āSeu Joel ā ele disse ā o senhor vĆ” para guerra, mas nĆ£o me morra! Repórter Ć© para trazer notĆcia, nĆ£o para morrerā. E Ć© isso que estou fazendo aqui nessa guerra: nĆ£o morrendoā.