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Adão, Eva, Confúcio e os refrigerantes

Imagine que alguém entregue um belo jardim a um casal de zeladores sem nenhuma experiên­cia. E que a dupla não precise mover uma palha para garantir o empregão — pode viver ali, dis­pondo à vontade de todos os animais e plantas, salvo uma única árvore. Mas, em vez de cumprir a norma, a moça cede a um argumento pouco con­sistente, come o fruto proibido e o oferece ao com­panheiro. O dono do jardim descobre a falta e ex­pulsa o casal. Para piorar as coisas, a partir de en­tão, a mulher terá partos complicados e será go­vernada pelo marido, que terá de trabalhar duro para manter a família. Segundo o Gênesis, nosso primeiro fracasso redundou no sofrimento du­rante o parto, no casamento e na perda da imorta­lidade. Mas, se existissem jornais na época, A Voz da Serpente teria registrado o caso assim:

 

Autoritarismo de Deus faz mais duas vítimas

Insegurança de quem se apresenta como “o Senhor de todas as coisas” deixa Adão e Eva sem teto

 

O casal de humanos Adão e Eva foi posto para fora do Jardim do Éden, sem indenização ou apelação. O autor da violência neoliberal foi nada mais, nada menos que Deus, que faz questão de grafar seu nome em maiúscula. Consta que o dono da terra está interessado em erguer um condomínio de luxo no Paraíso e precisava se livrar do casal. Mas o verdadeiro motivo

da expulsão foi o temor da concorrência. Quem informou a dupla sobre as vantagens de comer o fruto, injustamente proibido, foi nossa editora-chefe, logo responsabilizada pelo que insistem em chamar de crime e que, para nós, é direito à informação. Adão e Eva já receberam uma proposta para o setor de relações públicas do Inferno e discutem a possibilidade de apresentar um talk show erótico chamado O Fruto Proibido. O MSP — Movimento dos Sem Paraíso — convocou uma manifestação diante da porta do Céu, agora vigiada pelos querubins.

 

Como se vê, nem tudo é objetivo quando se trata de um fracasso. Brincadeiras à parte, a pró­pria Bíblia indica que a expulsão do primeiro ca­sal resultou na moda e na agricultura. Se os des­cendentes de Adão e Eva continuassem no Éden, em total inocência, não precisaríamos ganhar o pão com o suor do rosto. Ou seja, não existiria o trabalho, no fim das contas. Antigo como o ho­mem, e do ponto de vista pedagógico, o malogro é mais valioso que o sucesso. Afinal, até o maiorbest-seller da história — a Bíblia — parte do princípio de que somos capazes de aprender com os erros e não repeti-los. Quanto ao sucesso, registre-se, não é receita de bolo: perde a força ao ser replicado pura e simplesmente. O erro é sempre mais pedagógico que o acerto. Todo fracasso encerra uma lição e pode ser encontrado na cultura, na ciência, nos negócios e até na religião. Vejamos alguns exemplos extraídos da história de dois dos maiores líderes religiosos: Maomé e Buda. Um quinto da população do planeta (1,4 bilhão de pessoas) não hesita em apontar Maomé como o mais bem-sucedido profeta da história. Entre os muçulmanos, sua vida é bem conhecida. Mas no resto do mundo há quem ignore que o início de sua carreira foi um fracasso. Até os 40 anos, ele teve uma vida absolutamente comum. Finalmente, convencido de que um Deus único e onipotente dominava o universo, buscou convencer os mais íntimos dessa tese. Durante três anos pregou apenas entre seus companheiros. Quando finalmente passou a falar em público, seu êxito limitado incomodou o governo de Meca e ele teve de fugir para Medina, a 320 quilômetros dali. A hégira, sempre lembrada pelos muçulmanos, mudou a vida de Maomé, do islamismo e do mundo árabe. Em Medina, ele arrastou multidões até se tornar governante com plenos poderes. Seus seguidores atacaram Meca, para onde Maomé retornou em triunfo. Ao morrer, menos de três anos depois, já dominava todo o sul da Arábia. A unificação dos beduínos em torno de Alá -- e das ideias de Maomé, consolidadas no Alcorão -- tornou-se o impulso decisivo para a mais espantosa série de conquistas já realizadas. Já o príncipe Sidharta não se sentia feliz em seu palácio em Kaapilavastu, na Índia, perto da fronteira do Nepal. Aos 29 anos de idade, abandonou o cargo, a mulher e o filho pequeno e todos os seus bens para se tornar um andarilho. Durante sete anos, tentou tornar-se um asceta, autoflagelando-se com jejuns e práticas dolorosas. Percebeu, finalmente, que o sofrimento só prejudicava o seu cérebro, não o aproximava da sabedoria. Voltou a comer e abandonou o ascetismo, até que teve uma revelação. Uma semana depois, Gautama Buda começou a viajar pelo norte da Índia. Durante os 45 anos seguintes, pregou sua filosofia -- de que é possível alcançar o nirvana pela eliminação do egoísmo e dos desejos -- a quem quisesse ouvir nos povoados no norte da Índia. Atualmente, 350 milhões de pessoas ao redor do mundo são budistas.

Outro, com o perdão da palavra, papa da filosofia, Confúcio, peregrinou de uma corte a outra por 13 anos, tentando convencer os monarcas a adotar suas ideias sobre justiça e convivência em harmonia, até descobrir que era melhor lecionar. Escreveu cinco grandes textos da tradição chinesa e cunhou frases definitivas. Algumas delas cabem perfeitamente nesse contexto:

·      Exige muito de ti mesmo e espere pouco dos outros. Assim evitarás desgostos.

·      O homem que cometeu um erro e não o corrige comete um erro ainda maior.

·      Estude o passado, se queres prever o futuro.

O fracasso atua em todos os campos e também atinge os campeões. Em 1985, após 99 anos de sucesso, a marca mais conhecida do mundo cometeu um impressionante erro de marketing:  deixou de lado sua antiga regra "não mexa com a Mãe Coca" e trocou a fórmula original, secreta e viciante pela New Coke, mais doce e mais suave.

Era uma tentativa de barrar o crescimento da Pepsi entre o público jovem. Antes, a Coca tentara impedir o uso do aposto Cola por sua arqui-inimiga e fora derrotada nos tribunais. Na década de 70, ousando como pode e deve um segundo colocado, a Pepsi lançara uma campanha de testes cegos, oferecendo aos consumidores dois copos de refrigerante, sem identificação. A maioria escolhia a Pepsi.

Em 23 de abril de 1985 a New Coke entrou no mercado. Alguns dias depois, a produção de Coca-Cola original foi interrompida. Os consumidores odiaram. A Pepsi a  primeira a reconhecer o fracasso da Coca-Cola, exibindo um anúncio de TV com um velho sentado em um banco do parque, olhando a lata na mão. "Eles mudaram minha Coca-Cola", dizia o sujeito, com cara de dor. Eu não posso acreditar nisso.” Em 11 de julho de 1985, a empresa anunciou o retorno à fórmula original.  Rios de tinta foram produzidos sobre o maior erro da história dos refrigerantes. A Coca retomou sua posição de líder rapidamente e teóricos da conspiração chegaram a dizer que tudo não passara de uma jogada de marketing deliberada para reafirmar afeição pública para a Coca-Cola.

É que o fracasso não desce bem, nem com Coca-Coca. Ou Pepsi.

Para lidar com ele, é preciso paciência chinesa.

 

FRACASSO VIROU SUCESSO MUSICAL

Na música, o fracasso pode virar sucesso. Caso de Ninguém me ama, de Fernando Lobo e Antonio Maria, hit da dor-de-cotovelo imortalizado por Nora Ney e por Nat King Cole (num portunglês legítimo): Ninguém me ama, ninguém me quer/Ninguém me chama de meu amor/A vida passa, e eu sem ninguém/E quem me abraça não me quer bem.

Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso/E hoje descrente de tudo me resta o cansaço/Cansaço da vida, cansaço de mim/Velhice chegando e eu chegando ao fim.

VARGAS LLOSA E FUJIMORI

Em 1990,  o escritor Mario Vargas Llosa resolveu disputar a presidência da República do Peru. Perdeu feio para Alberto Fujimori. Vinte anos mais tarde, Llosa ganhou o Nobel de Literatura. Continua dando seus pitacos políticos em artigos publicados mundo afora. Quanto a Fujimori, está preso no Peru – foi condenado a 25 anos de cadeia por violação dos direitos humanos. Sua filha perdeu a eleição presidencial. Ele conquistou algumas regalias na prisão: sala de visitas com carpetes, computador, ar condicionado, cadeira de massagens, televisão, telefone público e dez mil metros quadrados para passear. Talvez considere um sucesso.

 

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